FliPacaratu – coração-palavra

Por Waleska Barbosa*

Cruzei a estrada. Cheguei nas Minas Gerais. Para os últimos dias do Fliparacatu, que aconteceu entres os dias 28 de agosto e 1 de setembro. Ao apresentar a estrutura do Festival Literário de Paracatu, os organizadores chamam a livraria, erguida no centro da cidade, de coração do evento. Ouso dizer: do lado esquerdo do festival, o que bombeia o sumo que o faz existir, é a palavra. O som dela.

Auditório Afonso Arinos. É lá onde batem todos os corações. Ali, sem pagar ingresso, as pessoas se reúnem para escutar. Ali, o pulsar. Ali, a vida como a queremos. Com amor, literatura e diversidade. Sentindo-me pioneira no Festival posto que estive em cada um dos dois anos desta novata trajetória no mundo, a quem se deseja longevidade, sinto-me presenteada pela possibilidade do festejar.

Fliparacatu apesar de ser o rebento tem todo o jeito de ser o regalo que costumamos ofertar aos nascituros. Em 2024, o evento estava ainda melhor. “Quando há possibilidades de correções, corrigimos”. Diz Tom Farias, um dos curadores. Perfeito aos nossos olhos, diria eu.

A literatura deu as mãos a outras expressões artísticas. E fez-se ciranda. Gira Fliparacatu. Ao som da Orquestra Ouro Preto e seu espetáculo Gonzagão. Balouçante como as fitas coloridas dos mascarados da Caretagem, de Paracatu. Ritmada como os instrumentos que soavam no bater dos pés dos integrantes do Moçambique Rainha, congado de Araxá. A Praça da Economia Criativa mostrando outras imagens, oferecendo sabores locais.

Paracatu como que magiada, deixando antever montanhas, mesmo as que tombaram sob a mineração, tinha um coração que se ouvia ao longe. Naquele miolo, a vida.

Vi a alegria de estar na rua. De poder desfrutar não apenas do evento, mas da própria cidade, vestida de arte e cultura. Lugar para todas as pessoas. E quem se distanciou no ano anterior, cioso de seu território, desta vez pareceu deixar a desconfiança de lado, para se aproximar e bailar junto.

De todos os pontos era possível ouvir o burburinho das crianças. O chamado de pregoeiros. Era possível ver entrega genuína. Mesmo que fosse para comer torresmo, como o que causou estranhamento a Joca Terron.

Era possível sentir o calor dos abraços de familiares que se encontravam. De gente nova a quem se era apresentado. O olhar brilhando por avistar diante de si as pessoas que escrevem as histórias de que se gosta.

As sacolas dos livros, essas tinham um gingado especial. Levavam tesouros há muito sonhados. Ou recém-descobertos. Em forma de poesia, crônica, romance, ensaio, conto, histórias para ninar os da casa grande. Leitores com seus novos objetos-livros – virando as páginas com o dedilhar cuidadoso de quem sabe o valor do instrumento que tem em mãos.

Em Paracatu foi possível libertar poemas. Abrir-lhes a gaiola. Foi possível deitar-se em pufes e mirar o céu. Foi possível subir no coreto e ter um ângulo novo daquele acontecimento. Foi possível conhecer rostos e histórias de professoras e peças religiosas em exposição.

Não faltou o cordel. Não faltou a redação. Não faltou o desenho. Não faltou a carta. Não faltou o sarau. A palavra cheia de roupagens e novos nomes, testando-se, testando-nos. Mostrando-se desnuda. Mordendo e soprando. Beijando e escarrando.

Paracatu magiada. Proporcionando, no meio do caminho, com o encontrar assim, como se moradores antigos fossem, uma Conceição Evaristo, uma Eliana Alves Cruz, uma Lívia Sant’Anna Vaz, um Jeferson Tenório, um Paulo Lins, um Tom Farias, uma Eliane Marques, uma Joana Silva, uma Bianca Santana, uma Igiaba Scego. Como esbarrar com um homenageado Ailton Krenak. Um das 63 pessoas escritoras que passaram por lá. Circularam entre os dez espaços que compuseram o festejo.

Fliparacatu foi só generosidade. Nos dando a oportunidade de saber mais da cidade. Nos dando a oportunidade de levar mais de nós. Nos dando o prazer dos olhos nos olhos. Do pisar devagar (alguém me avisou) nas pedras centenárias.

No final, os jovens desolados diziam sentir algo como fim de Carnaval. O que iriam fazer agora? Como seriam as noites? E os dias? E as possibilidades que se abriam com toda aquela movimentação? “E dá para beijar na Fli?”. Sim. Respondem-me enfáticos. Amor, literatura e diversidade.

Hospedada em um casarão histórico de paredes azuis e janelas vermelhas, imaginei outros mundos. Privei da companhia de família da cidade, conversei prosa infinda, à moda mineira, com pão de queijo e café sobre a mesa. Tudo isso enchia meu coração-palavra de afeto e memória quentinha como o sol que pairava lá fora. Dona Benedita, Seu Albino. Filhos e netas. Podiam ser os Barbosa. E eram. Podia ser o meu quilombo. E era.

Afinal, se o Brasil é quilombola, Paracatu também o é. Foram as mãos negras que rasgaram o chão para tirar o minério que sustentou o Brasil, sustenta a cidade e patrocina o festival. Das margens, precisam estar no centro. Pelo refúgio que proporcionaram, precisam ser acalentadas e cuidadas.

Foi o que lembraram Leonor Costa, minha anfitriã, Lara Luísa e Silvano Alves de Avelar em suas falas, na Academia de Letras do Noroeste de Minas. O espaço pequeno se agigantou. O público deixou de ser local para ser universal. A cidade, pensada e ressignificada desde a sua ancestralidade. Reverência aos que vieram antes. Flores em vida. Nunca apagamento. Nunca silenciamento. Sempre palavra.

Texto: Waleska Barbosa – Paraibana, de Campina Grande, e mora em Brasília desde 2000. Mãe de Morena, é autora do livro ‘Que o nosso olhar não se acostume às ausências’. Apresenta o ‘Quilombo de Wal’ na TV Comunitária do DF e idealizou o Encontro Julho das Pretas que Escrevem no DF. (@carnawaleska | www.umpordiawb.com.br)

Fotos: Divulgação FliParacatu

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